Em Paris para o Silmo 2016, fui convidada para conhecer a produção dos óculos da Cartier, a Manufacture Cartier Lunettes, situada em Sucy-en-Brie, nos arredores de Paris. De lá, saem para o mundo peças feitas de acetato, chifre, madeira, metal e ouro maciço.
Não foi a primeira nem será a última. Mas, sem dúvida, foi a mais luxuosa e muito esclarecedora. Como especialista em óculos e editora de uma revista do ramo, é natural conhecer o processo produtivo de óculos pelo mundo afora. Para quem me acompanha, deve lembrar que visitar indústrias de óculos me remetem a uma certa vibração Willy Wonka, aquele excêntrico personagem do filme hollywoodiano, dono de uma incrível fábrica de chocolate que mantinha seus domínios trancados a sete chaves e um dia resolveu fazer um concurso para que sete crianças conhecessem sua fábrica. Para isso, teriam de achar um cupom dourado na embalagem de sua clássica barra de chocolate.
Cada vez que recebo o convite para visitar uma fábrica de óculos é como se eu encontrasse o cupom dourado ao abrir uma barra de chocolate. É uma honra, afinal, é a hora em que as empresas abrem suas portas, contam suas histórias e compartilham segredos (uns reveláveis, outros não). E, dessa vez, de fato, o cupom era dourado, afinal se tratava da visita à Manufacture Cartier Lunettes, também conhecida pela sigla “MCL”, a unidade produtiva dos preciosos óculos da joalheria francesa, cujas coleções são distribuídas no Brasil pela GO.
Inaugurada em 2013 e concebida integralmente sob o conceito da sustentabilidade, a nova sede da MCL ocupa uma área de 8 mil metros quadrados em Sucy-en-Brie, cidade a cerca de 40 minutos do centro de Paris. Com 215 funcionários, abriga todo o processo produtivo – a exceção é a linha de alta joalheria, que requer especificidades técnicas, e, por isso, é produzida no ateliê da joalheria. Da MCL, saem para o mundo óculos feitos de acetato, chifre, madeira (de espécies nobres como Bolivar e Bubinga), metal (que recebem banhos de ouro e platina de, no mínimo, 3 mícrons) e ouro maciço (nas tonalidades amarelo, branco e rosa). E, algumas peças, como as da coleção Divine, ainda recebem aplicações de ônix e madrepérola.
Joalheiro dos reis
A Cartier começou sua operação de óptica em 1983 lançando a coleção Les Must de Cartier (do francês, algo como “itens necessários da Cartier”) mas, na condição de uma marca secular, deu início à sua tradição em óculos em 1887 com charmosas e especiais peças que ajudaram a escrever a história da óptica mundial como o lorgnette (óculos de mão, com um pequeno cabo que suspende o frontal) de padronagem tartaruga e diamantes para a princesa de Essling, da Áustria.
O ano é 1847 e a cidade é Paris. Mais especificamente, a Rue Montorgueil, um dos endereços mais sofisticados da época, onde o jovem Louis-François Cartier tocava sua pequena oficina de joias. Com peças leves e modernas, em contraste com os ornamentos rebuscados de então, conquistou cada vez mais clientes. Quatro anos mais tarde, por indicação de uma condessa, Cartier tornou-se fornecedor oficial da realeza, passando a atender Napoleão 3º. Assim, ganhou o título pelo qual ficou conhecido até hoje: o “joalheiro dos reis”. Até porque, desde então, realezas de vários países fizeram da Cartier sua fornecedora oficial.
A Cartier está entre as mais valiosas do mundo e faz parte do conglomerado suíço de luxo Richemont. Além da tradição e um sólido DNA, algo inerente às marcas de luxo, carrega uma vocação para a criatividade. Ao longo das décadas, introduziu conceitos até então impensáveis no design de joalheria. Hoje, vários desses ícones integram sua coleção de óculos: Collection Première, Panthère, Santos, Signature C e Trinity.
O valor do handmade
Na óptica, o princípio é manter conexão total com o seu DNA, ao produzir óculos preciosos tais quais as joias, levando em conta a sofisticação de materiais, o desenvolvimento de técnicas próprias, a valorização do handmade (do inglês, “feito à mão”), a fabricação 100% em solo francês e a qualidade absoluta.
Várias das técnicas usadas na fabricação dos óculos são similares às técnicas de joalheria e várias etapas da produção são executadas à mão, abrindo mão da automação integral. E todas as peças são finalizadas à mão para garantir a sua perfeição. É bem interessante observar a modernidade convivendo harmoniosamente com a tradição. Um exemplo é na área de desenvolvimento de coleções, em que protótipos de metal e resina são gerados por impressão 3D ao mesmo tempo em que profissionais, verdadeiros artesãos, testam as peças em mesas de trabalho de joalheiro, cheias de ferramentas, analisando e aprimorando cada detalhe com suas mãos.
O laboratório de qualidade é um parque de diversões para os óculos, que são testados à exaustão, passando por 36 provas de resistência dos mais variados tipos. Além daqueles testes exigidos pelas normas de certificação que às vezes diferem entre países – e a Cartier cumpre todos -, são realizados outros tantos para garantir a durabilidade das peças. Um dos mais curiosos é o que simula a resistência dos óculos soltos dentro de uma bolsa feminina com itens como carteira, batom etc. Há também os testes de temperatura a fim de verificar como os óculos reagem às mais severas condições climáticas. Sem falar naquela prova mecânica com ares lúdicos que simula a abertura de hastes milhares de vezes. Passando por todos os testes, o modelo está apto a figurar na coleção Cartier e a entrar em produção. O setor de galvanoplastia é um dos mais modernos do mundo e, por se tratar de metais preciosos, o estado dos banhos é checado diariamente por um químico. Na área de polimento, dentro dos tambores, apenas pequenas partes de madeira tratam as peças, a fim de garantir um brilho mais duradouro.
Madeira, chifre e ouro
A madeira ganhou destaque no universo óptico há quatro anos, quando se tornou tendência entre as marcas de design, mas essa matéria-prima já é íntima da Cartier muito antes disso. Pela primeira vez, tive a oportunidade de ver como são feitos óculos de madeira, compostos por 20 finas camadas do material entremeadas por uma cola especial, que então são prensadas para chegar à versão final da matéria-prima. Diferentemente da madeira maciça, que não é flexível e pode alterar suas condições com o passar do tempo, esse sanduíche de camadas garante a beleza do material e, principalmente, sua durabilidade em condições perfeitas. Além disso, as peças de madeira requerem muita atenção nas etapas de polimento e verniz por conta da sensibilidade do material.
Os óculos feitos de chifre seguem o mesmo princípio do sanduíche de camadas, mas em vez das 20 da madeira, são apenas três. E, diferentemente da madeira, não exigem verniz, porque já são perfeitos em sua aparência natural – além disso, quando parecerem desgastados, podem ser polidos quantas vezes forem necessárias. Outro detalhe importante sobre o chifre é a qualidade: apenas os menores atendem a condição de matéria-prima para óculos, por conta da perfeita textura. Obviamente, essa matéria-prima é obtida de forma ética, sem causar danos aos animais. Peço licença pelo uso do clichê e do trocadilho, mas a visita terminou com chave de ouro. Mais uma novidade diante dos meus olhos: a fabricação dos óculos de ouro maciço! Além de todos os padrões de produção da joalheria Cartier, a segurança também corresponde. O profissional da área saúda o grupo, pede licença, e minutos depois sai do cofre com um cilindro de 8 quilos de ouro maciço, que é o princípio de toda a produção, mais um trabalho, aliás, que exige muita maestria e precisão. Tornar uma peça de ouro confortável em um rosto por muitas horas é um desafio e tanto. Quem está no balcão e já conviveu com essa situação sabe do que estou falando: não basta apenas um bom design para fazer jus a um material tão nobre. Óculos de ouro correm o risco de serem pesados, para isso, a Cartier dispõe de uma tecnologia de charneira que distribui corretamente o peso pela peça, permitindo que seja usada confortavelmente por longos períodos.
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