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O cineasta Pedro Almodóvar foi o responsável por eu me apaixonar de vez pela Espanha. Eu já nutria um certo carinho pelo país por conta de ter sido a sede da Copa do Mundo de 1982 – mesmo com a fatídica e tristíssima eliminação do Brasil nas quartas de final para a Itália -, mas foi Almodóvar que dobrou meu coração de vez.

Desde o final da década de 80, quando comecei a ver seus filmes, obviamente não parei mais. Além do seu lirismo, da estética e da forma como aborda o universo feminino, gosto muito como ele faz, das cidades, seus personagens. Depois de retratar tão bem Madri em tantas obras, em 1999, Almodóvar virou suas lentes para Barcelona ao rodar uma de suas obras-primas (Tudo sobre minha mãe). E se essa cidade já tinha encantos de sobra, tornou-se ainda mais espetacular por meio do olhar desse gênio do cinema.

Por conta de Almodóvar, desde o começo dos anos 90 tenho feito uma incursão pelo cinema espanhol. Primeiro, nas eras VHS e DVD e, mais recentemente, com a chegada do streaming.  Foi quando chegaram as séries. E veio Merlí, uma despretensiosa descoberta no catálogo da Netflix uns quatro anos atrás. Quando resolvi assistir, achei que seria uma versão catalã de uma boa temporada de Malhação, já que a sinopse falava de um professor de Filosofia em uma escola secundária de Barcelona. A propósito, sou noveleira e assisto à Malhação; a de 2018, intitulada “Viva a diferença”, é uma das melhores produções da tevê brasileira – e olha que já assisti a muita coisa neste meio século de vida!

Mestres da vida

Merlí foi uma descoberta deliciosa. Além de resgatar a figura daquele professor que compartilha lições de vida e de quem a gente vai se lembrar para sempre (sim, Sociedade dos Poetas Mortos, de 1990, dirigido por Peter Weir, é um dos meus filmes favoritos da vida!), traz bons dramas e aventuras sobre alunos, outros professores e suas famílias naquele lindo cenário que é Barcelona e daquele jeito bom espanhol de contar histórias.

E a forma que os criadores inseriram a filosofia na série é sensacional. Dá até para aprender e/ou relembrar um pouquinho do que se viu nos bancos da escola e da faculdade. E eis que foi em um desses episódios que Merlí compartilha uma espécie de parábola: a história da vaca que, entre vários bloggers, acabou sendo apelidada de “vaca metafísica”. Fiquei encantada com a história, que, curiosamente, tem a ver com uma expressão tão brasileira – “a vaca foi para o brejo”. Tem a ver com aqueles momentos de transição da vida, às vezes forçados. Vou compartilhá-la aqui com vocês:

“Um sábio mestre e seu discípulo andavam há muitos dias e procuravam um lugar para passar a noite. Avistaram, então, um casebre no alto de uma colina e resolveram pedir abrigo. Foram recebidos pelo dono, um senhor maltrapilho e cansado, que os convidou a entrar e apresentou a esposa e os três filhos.

Durante o jantar, o discípulo percebeu que a comida era escassa até mesmo para os quatro membros da família. Ficou penalizado com a situação e perguntou ao dono como eles se sustentavam.

O senhor respondeu:

– Está vendo aquela vaca lá fora? Dela, tiramos o leite que consumimos e fazemos queijo. O pouco de leite que sobra é trocado por outras mercadorias. A vaca é nossa fonte de renda e de vida.

De manhã, o mestre e seu discípulo se levantaram antes da família e preparavam-se para ir embora, quando o discípulo, ainda penalizado, perguntou:

– Mestre, como podemos ajudar essa pobre família a sair dessa miséria?

O mestre então falou:

– Quer ajudar mesmo? Empurre a vaca precipício abaixo!

Espantado, o discípulo falou:

– Mas a vaca é a única fonte de renda deles! Se matarmos o pobre animal, ficarão mais miseráveis e morrerão de fome!

Calmamente, o mestre repetiu a ordem:

– Jogue a vaca precipício abaixo.

Indignado, o jovem seguiu as ordens do mestre e mandou a vaca precipício abaixo, matando-a.

Alguns anos mais tarde, o discípulo ainda sentia remorso e decidiu visitar aquela família. Voltando à região, avistou de longe a colina onde ficava o casebre. Olhou espantado para uma bela casa e pensou:

– Decerto após a morte da vaca ficaram tão pobres e desesperados que tiveram de vender a propriedade.

Ao passar pelo portão, viu um criado e perguntou:

– Você sabe para onde foi a família que vivia no casebre que havia aqui?

– Sim, claro! Ainda moram aqui, estão nos jardins, disse o criado, apontando para a frente da casa.

Aproximando-se, o jovem viu um senhor altivo, brincando com três jovens bonitos e uma linda mulher. A família que estava ali diante dos seus olhos não lembrava em nada os miseráveis que conhecera tempos atrás.

O homem reconheceu o discípulo de imediato e o convidou para entrar e o jovem quis muito saber como tudo havia mudado tanto desde a última vez que os viu.

O senhor, então, contou:

– Na manhã seguinte à estadia de vocês, nossa vaquinha caiu no precipício e morreu. Como não havia mais fonte de renda e sustento, fomos obrigados a procurar outras formas de sobrevivência. Descobrimos muitas outras formas de ganhar dinheiro e desenvolvemos habilidades que nem sabíamos que éramos capazes. E continuou:

– Perder a vaquinha foi horrível, mas aprendemos a não nos acomodar e nos conformar mais com a situação em que estávamos. Às vezes, é preciso perder para ganhar mais adiante.

Só então o discípulo entendeu a profundidade da ordem do mestre.”

“7 a 1 particular”

Certamente, todo mundo tem pelo menos uma vaca dessas na história de sua vida. Eu tenho várias, umas têm até nome, hehe… São aquelas situações que, depois que passamos por elas, a gente se toca de como foi bom aquela vaca ter ido precipício abaixo e se tornam troféus que a gente acumula pela vida afora. Uma espécie de “7 a 1 particular” com final feliz, porque, convenhamos, a dona original do 7 a 1 não teve final feliz desde então, já que também não conquistou a Copa em 2018.

Curiosamente, quando 2020 mal começava e sinalizava ser um ano muito promissor, a vaca metafísica foi coletiva. Nos mesmos moldes do jovem discípulo, a existência apareceu e, quando o sol estava prestes a nascer, jogou a vaca (ou um rebanho inteiro) de todo mundo precipício abaixo. Sim, a pandemia é um rebanho que foi para o brejo mundialmente falando, sem considerar condição social, geografia, tampouco orientação política.

Já são longos meses desde março… Alguns dias têm sido difíceis, outros nem tanto e, vamos combinar, também tem havido bons momentos, até porque o ser humano é uma colcha de retalhos de emoções. E, por mais que cada um tenha uma gigante zona de conforto e seja resistente a mudanças, é preciso ter sabedoria para se adaptar. E quem resiste menos e se adapta com mais facilidade e/ou rapidez é quem vai colocar a vaca-troféu na estante da melhor forma.

Esse rebanho que foi para o brejo veio para mostrar que não é possível ter controle sobre tudo. Acho que essa é a grande lição: conduzir bem a vida, com amor, e praticar o desapego sempre. É preciso fazer planos, mas sempre ter em mente que, em vez de controlar, é preciso exercitar o jogo de cintura. Esse, sim, cada vez mais exigido!

Viva a vida, viva a cultura e viva o jogo de cintura, amigos!

P.S.: Merlí é esplendorosa do início ao fim. Eu recomendo, está lá na Netflix. E na assumida incapacidade de nomear apenas um filme favorito de Pedro Almodóvar, tenho quatro: De salto alto, Carne trêmula, Tudo sobre minha mãe e A pele que habito.

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